Em 2010, eu estava fazendo meu doutorado em planejamento ambiental (COPPE-UFRJ), e morava em Niterói (RJ). Foi quando aconteceu o deslizamento que ocorreu no bairro periférico Viçoso Jardim, mais especificamente no Morro do Bumba, após horas de chuva intensa e ininterrupta. O bairro onde eu morava, assim como outros bairros mais centrais, ficaram alagados, mas além disso, não sofreram maiores danos ou perdas. E o Morro do Bumba, distante do centro, sem infraestrutura básica, e que anteriormente era um lixão e que acabou sendo desativado e ocupado por moradias (seus habitantes não tinham idéia do risco a que estava expostos), veio abaixo em questão de horas, desabrigando e acabando com a vida de tantas famílias. Me lembro de ter ficado muito chocada com este evento, e mais ainda com a história do local, na qual os moradores do morro não sabiam sequer o que tinha por baixo do solo. Infelizmente, esse é apenas mais um de centenas de casos assim que vivemos ano após ano. Casos onde alguns bairros sofrem pouco ou nada sofrem em ocasião de chuvas, por exemplo, enquanto outros, com as populações mais necessitadas, ficam em estado de calamidade. Só que não são só chuvas que causam problemas. Falta de saneamento, falta de infraestrutura, desastres, entre outros problemas, atingem muito mais os bairros periféricos e as minorias étnicas. O nome disso é Racismo Ambiental.
O Racismo ambiental, de acordo com Baptista e Santos (2022), foi cunhado a partir do conceito de injustiça ambiental, que é mais observada nas periferias urbanas. Estas regiões também contam com porcentagem maiores de minorias étnicas e raciais, como negros, pardos ou indígenas. Portanto, são estes grupos que mais sofrem com a precariedade, a pobreza, a falta de recursos, a exclusão, os desastres, as doenças (como a Covid), em regiões periféricas. O conceito de Racismo Ambiental foi construído pelos professores Benjamin Chavis e Robert Bullard, por meio de pesquisas realizadas por eles, e que mostraram que os bairros periféricos, onde moram pessoas mais pobres e também pertencentes à minorias étnicas e raciais, eram os bairros que mais sofriam com a degradação ambiental e seus impactos na saúde e na vida cotidiana, sofrendo graves consequências (como os deslizamentos, as inundações, a poluição do ar, da água, o descarte inadequado de resíduos, e até mesmo ausência ou ineficiência de políticas para o desenvolvimento local) (Acselrad, Mello e Bezerra, 2009).
Nos bairros periféricos, há menos amparo da gestão urbana, há menos políticas públicas desenenvolvidas, há menos dados e informações sobre o local, há menos conhecimento disponível, o que permite que pessoas morem em locais de risco sem saber disso, por exemplo. E quando finalmente são desenvolvidos estudos, as autoridades não são eficientes para intervir de forma definitiva, criando melhores condições de vida local, promovendo o subsídio necessário para amparar os moradores. São muitas fragilidades ambientais e sociais, que, somadas, podem culminar em desastres. E qual seria a alternativa, então? Como ultrapassar esses gargalos e tornar visível as demandas, as necessidades, os direitos dos cidadãos de bairros periféricos? Como dar voz a eles?
Aqui entra uma alternativa de abordagem, que é o mapeamento participativo. Mapas participativos são aqueles que combinam conhecimento técnico especializado (geotecnologias) com o conhecimento local da comunidade. Pode ser usado por especialistas e membros da comunidade como instrumento de aprendizado, empoderamento, reconhecimento do território e material para desenvolvimento de propostas de planejamento de bairro e cidade. Este método é uma abordagem multidisciplinar com o objetivo de apoiar o planejamento e a tomada de decisões no contexto urbano, fazendo uma melhor compreensão do conhecimento local e das percepções das pessoas através de ferramentas de mapeamento interativas e geotecnologias (Kahila-Tani et al., 2016).
O uso do mapeamento participativo tem apoiado grupos marginalizados no reconhecimento de seus territórios e na legitimização das demandas, o que tem resultado em um importante instrumento de empoderamento, em direção a transformações sociais e a construção de políticas públicas ocais melhores. Assim, este instrumento pode ser amplamente utilizado para captar a percepção do cidadãos sobre seu território, permitindo sejam registradas as percepções, experiências e desafios.
O mapeamento participativo é composto de diversas ferramentas que tem a capacidade de captar as percepções dos cidadãos e espacializar estas informações, de modo a torná-las visíveis. Ou seja, é possível fazer com que as populações periféricas mapeiem seu próprio território, apontando com precisão quais tipos de problemas ocorrem e onde. De posse dessas informações e sabendo o histórico dos participantes do processo de mapeamento, assim como seu gênero e raça, é possível observar como as perspectivas relacionadas ao gênero e a raça estão inseridas dentro do território mapeado. Dessa forma, é possível ter um cenário acurado do que realmente ocorre ali, e assim, ressaltar as desigualdades, as injustiças e os impactos que elas tem sobre a vida deste grupo de pessoas. Rais ferramentas podem ser os mapas falantes, mapas em escala, maquetes ou mapeamento em 3D ou ainda plataformas online como OpenStreetMap, MyMaps, entre outras.
Desde 2016 trabalho com mapeamento participativo, e a minha primeira experiência foi no bairro Novo Recreio, em Guarulhos. Um bairro precário, distante do centro da cidade, com poucas ruas asfaltadas, que em época de chuvas não permitem que os ônibus circulem. Novo Recreio, assim como outros bairros periféricos, tem muitas casas sem acesso á energia, sem água, e com acesso precário à alimentos frescos, constituindo os “desertos alimentares” (que são locais onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso não existe).
Recentemente, estive no bairro da Brasilândia (SP), realizando uma breve atividade de mapeamento participativo, como parte do evento “Diálogos sobre Desigualdades Socioambientais: Paralelos entre Injustiça e Racismo Ambiental (Brasil-Estados Unidos)”, no dia 22 de outubro, das 14:00 até as 17:30. O evento foi viabilizado pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE) e a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (profa. Ana Paula Fracalanza e Izabela Santos) e , pelo Instituto Pólis (Ana Sanches), e Instituto Perifa Sustentável (Amanda Costa, Matheus Pereira Santos).O objetivo desta atividade foi engajar moradores locais para que eles dialogassem sobre os principais problemas sociais e ambientais que sofrem no seu dia a dia no bairro, e mais do que apontar problemas, que trouxessem também soluções e novas idéias. Assim, neste encontro, foram gerados mapas básicos, também construídos com base nas principais falas dos participantes. Os mapas foram gerados manualmente e digitalizados depois com o software QuantumGIS.
Figura 01: Mapa básico com todos os elementos mapeados pelos participantes (pontos positivos e pontos negativos do bairro)
Durante a apresentação dos participantes, a facilitadora Carolina Carvalho solicitou que eles comentassem sobre o bairro, dificuldades e demandas necessárias, mas também aspectos positivos e potenciais. Assim, foi possível agrupar as informações em dois mapas, um contendo um diagnóstico geral e as dificuldades/demandas, e outro mapa contendo propostas.
Mapa diagnóstico/demandas
Foi relatado pelos participantes os seguintes pontos chave que representam as dificuldades e as demandas dos habitantes da Brasilândia, de acordo com a Figura 02.
Figura 02: Mapa de demandas e necessidades do bairro
Os principais pontos abordados pelos participantes nesta etapa foram:
- “Pobreza” de projetos sociais: são necessárias mais ofertas de cursos para jovens, falta de oportunidades e capacitação profissional.
- Moradias precárias
- Falta de pesquisa por demandas locais para planejar cursos
- Poucas opções de lazer
- Falta de médicos (os médicos existentes estão sobrecarregados). Superlotação de hospitais, baixo efetivo medico e desvalorizado (a pandemia escancarou problema)
- Violência e sensação de insegurança
- Barragem de Perus requer atenção
- Saneamento precário, com descarte irregular de resíduos, inclusive em espaços públicos como praças. O lixo e entulho limitam acessos e possibilidades no bairro.
- Esgoto à céu aberto
- Alagamentos (exemplo: Jardim Damasceno)
- falta de equipamentos públicos
- Falta de opções culturais (é necessário se deslocar para a região central da cidade)
- Evasão escolar (“educação é um desafio”)
- Falta de parques e verde urbano, e os que existem estão mal cuidados
- Transporte precário e inacessível, que interfere em possíveis parcerias entre instituições (“transporte não é feito com base na realidade”)
- Periferia invisibilizada
- Moradia precária em morro e encostas
- As periferias não são iguais. São necessárias políticas específicas.
- Presença de rios poluídos (exemplo: o córrego local)
- Não existe a sensação de pertencimento e não há engajamento
- Pode ser necessário um afastamento do estereótipo periférico para ter mais liberdade
- Racismo e desigualdade
- Distanciamento e exclusão social e geográfica (para os moradores, é preciso fazer o movimento em direção ao centro, para oportunidades)
É importante notar aqui o quanto os moradores conhecem seu próprio bairro e sabem exatamente do que precisam.
Mapa de propostas
Para o mapa de propostas, não foram inseridos pontos em locais exatos, mas sim sugeridas possíveis áreas que poderiam receber equipamentos e implementações de novos projetos (Figura 03).
Figura 03: Mapa de propostas para a região da Brasilândia
Como exemplo, foi sugerida uma região específica para ser um polo científico, inclusive para gestão de resíduos (e implementação de mais ecopontos). No entorno da Praça Marielle foi sugerida a implementação de áreas verdes urbanas e a remoção do entulho existente e políticas para a violência existente no local). Em outro local, próximo ao terminal Vila Cachoeirinha, foi sugerida uma área que é considerada adequada para escolas e capacitação profissional. Foi também sugerida uma área específica para opções de lazer e cultura (região da Rua Bernardo de Vera), e coleta de lixo mais eficiente na região do CEU Paulistano.
As ONG’s são vistas como elementos positivos e que contribuem para o desenvolvimento local, como por exemplo, combatendo a fome e acolhendo a população. Foi discutida a necessidade de se levantar propostas reais feitas pela população local. Foi sugerida também a possibilidade de se realizar um mapeamento da violência do bairro.
Este é um relatório preliminar baseado em um evento único, de duração de 3 horas. São recomendadas atividades de validação dos elementos mapeados junto aos participantes e facilitadores, sendo necessárias mais horas de atividades e reuniões. Também é possível a elaboração de mapas com mais dados (pré-existentes), que podem configurar análises mais aprofundadas e embasar políticas mais efetivas.
Como disse o Prof Julian Agyeman, neste mesmo evento (em palestra remota), precisamos de um planejamento urbano que seja reparador, que foque na co-existência dos grupos sociais de modo a superar as desigualdades.
O mapeamento é uma ferramenta que pode ajudar a descobrir e priorizar as demandas periféricas, legitimando essas necessidades, e nós, cidadãos, podemos utilizar este conhecimento para gerar produtos de impacto que façam pressão na gestão urbana. Como Amanda Costa (Perifa Sustentável) também falou, em sua palestra no evento, precisamos de novos atores para lidar com esses novos desafios. E esses novos atores somos nós, cidadãos!
Referências:
Fotografia: Carolina Carvalho, no Instituto Perifa Sustentável
Baptista, A.C.S. & Santos, I.P. 2022. O RACISMO AMBIENTAL NA METRÓPOLE PAULISTANA: ENTRE OS BECOS E VIELAS DE SÃO PAULO. https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1352/1295
ACSELRAD, Henri (org.) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello Amaral; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é Justiça Ambiental? Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2009
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